O setor energético mundial está vivenciando uma profunda transformação impulsionada pelo efeito das mudanças climáticas, especialmente o aquecimento global. Os estudos científicos recomendam e os eventos climáticos extremos atestam a necessidade urgente por uma transformação energética, que pode ser definida pela alteração de padrões de produção e consumo dos recursos energéticos e, neste momento, preconiza a descarbonização da matriz energética. Para que essa transformação aconteça são necessárias mudanças tecnológicas, novas cadeias produtivas e mudanças importantes nos padrões de consumo de bens e serviços da sociedade.
Os pilares e direcionadores da transição energética são os conhecidos 4D’s:
Descarbonização
Descentralização
Digitalização
Democratização
As metas de descarbonização têm sido reafirmadas periodicamente e estão sendo perseguidas com seriedade no setor elétrico mundial, apesar dos desafios oriundos desse processo. Nos últimos anos, vivenciamos o aumento de fontes renováveis como água, sol, vento e biomassa, em substituição aos recursos energéticos de origem não renovável, como carvão, petróleo e gás na matriz elétrica.
A matriz energética brasileira é conhecida por ser predominantemente renovável devido à abundância de recursos hídricos disponíveis e utilizáveis para geração de energia elétrica. Muitos desses recursos funcionam como baterias naturais, armazenando energia cinética da água em épocas de grande afluência e atuando como reserva de energia para o sistema elétrico. Essa característica tem sido essencial para permitir o aumento massivo de outras fontes renováveis com características assíncronas, como a eólica e solar, mantendo ou melhorando a confiabilidade do fornecimento e contribuindo para a descentralização dos recursos energéticos. O aumento dessas outras fontes é especialmente importante para reduzir a dependência das estações chuvosas, que podem ser duramente afetadas pelas mudanças climáticas.
A descentralização se caracteriza pela distribuição dos recursos energéticos ao longo da rede, mais próximos à carga, visando minimizar os impactos ambientais decorrentes da construção de infraestruturas de geração, transmissão e distribuição de energia de grande porte, dutos de combustíveis e demais estruturas de transporte, resultando em redução de perdas.
Estudos realizados pelo Operador Nacional do Sistema (ONS) indicam que a energia solar terá sua participação ainda mais aumentada na matriz elétrica brasileira nos próximos anos. A expectativa de crescimento atual é de 22,2% registrados em 2024 e 28,7% até 2028, com considerável contribuição de micro e minigeração distribuída (MMDG), atingindo 49,5 GW de capacidade instalada conforme Figura 1. O percentual total de fontes assíncronas planejadas é de 42,7% da matriz até 2028. A presença cada vez maior de fontes intermitentes tem aumentado os desafios para a operação da rede e são gatilhos recorrentes em grandes perturbações no sistema mundial. Os sistemas de armazenamento são soluções em uso para melhor gerenciar o fluxo na rede e contribui para minimização de restrições de geração e para a estabilidade do sistema, melhorar a flexibilidade e a resiliência da rede, no entanto ainda há desafios a serem superados e equacionados.

Fonte: Sumário Executivo PAR/PEL 2024. Operador Nacional do Sistema
O montante de fontes intermitentes previsto para conexão no sistema requer o aprimoramento da digitalização do sistema elétrico a fim de garantir o gerenciamento desses recursos. Isso porque a digitalização contribui para o incremento da flexibilidade e inteligência ao setor energético, permitindo a aquisição de dados importantes para a observabilidade e a previsibilidade do comportamento da rede, garantindo assim uma operação segura. Esses requisitos têm tornado o setor elétrico intensivo em dados que precisam ser tratados, organizados e podem ser utilizados para melhorar a qualidade do fornecimento de energia, a experiência dos clientes, assim como otimizar a operação, a manutenção, além de modular a carga, combinando requisitos de flexibilidade com fontes flexíveis.
A democratização da energia elétrica está alinhada ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), cujo foco é “garantir o acesso a fontes de energia confiáveis, sustentáveis e modernas para todos”, tornando os consumidores os grandes protagonistas dessa transformação. No Brasil, se considerarmos o crescimento da geração solar descentralizada e como ela tem alterado a dinâmica do setor elétrico brasileiro.
A implementação desses princípios tem trazido grandes desafios ao setor elétrico nos quesitos flexibilidade, resiliência, segurança cibernética e eficiência e exige das empresas do setor grandes montantes de investimentos, modernização e otimização de seus ativos e processos, de forma cada vez mais rápida e eficiente.
Diante deste cenário, atualmente sistemas de distribuição e transmissão apresentam restrições ao fluxo de novas injeções em diversas regiões. Além de ocorrência de cortes de geração recorrentes, para garantir o ponto de operação segura da rede devido ao excesso de geração e ausência de carga, isto é, garantir a estabilidade do sistema.
Nesse sentido, soluções de armazenamento, desenvolvimento de microrredes, processos e tecnologias para otimizar o despacho de MMGD podem ser incorporados ao sistema elétrico brasileiro como alternativa, substituindo investimentos em ativos tradicionais, gerando um novo mercado a ser explorado e desenvolvido.
Sistemas de armazenamento podem ser utilizados associados à geração renovável para melhorar seu perfil de geração e proporcionar arbitragem energética. Além de tornar as fontes intermitentes em fontes estáveis e despacháveis.
A aplicação no sistema de transmissão também pode ser uma realidade, uma vez que os ativos podem ser remunerados como um ativo de rede da mesma forma que ocorre com outros equipamentos de transmissão. No entanto, estudos indicam que a viabilidade econômica se torna mais promissora quando se remunera os serviços auxiliares que podem ser providos por essa tecnologia, como controle de tensão e frequência, alívio de congestionamento da rede e backup do sistema de transmissão em emergências. Mas para isso se faz necessário aprimoramentos regulatórios. Os sistemas de armazenamento também podem proporcionar reserva de capacidade e redução de picos de demanda.
No sistema de distribuição, a regulamentação já permite a inclusão de sistemas de armazenamento na base de remuneração, mas um ponto desfavorável é o alto custo das baterias e outros componentes do sistema em comparação com soluções convencionais. Esses recursos que podem ajudar a melhorar a confiabilidade em áreas onde a rede ainda não é robusta, contribuindo para melhoria da qualidade do fornecimento de energia, auxiliar no controle de frequência, tensão e fator de potência, alívio de carga de alimentadores e redução de picos em transformadores.
Considerando os desafios advindos do crescimento expressivo de fontes intermitentes na matriz elétrica brasileira e os requisitos de estabilidade, confiabilidade e disponibilidade do sistema, os sistemas de armazenamento se apresentam como uma solução promissora para o enfrentamento dos cenários atual e futuro do setor elétrico e um importante viabilizador da transição energética.

Artigo escrito pela Gestora do Núcleo Estratégico de Armazenamento e Baterias – Michele dos Reis Pereira
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