Se a inteligência artificial (IA) será protagonista da transição energética global, o Brasil precisa garantir que essa protagonista fale português técnico, entenda nossa regulação e conheça os bastidores do setor elétrico.
A integração da IA no setor elétrico brasileiro tem avançado de forma consistente, impulsionada por uma combinação de fatores técnicos, operacionais e ambientais. O sistema elétrico, cada vez mais complexo, exige alta disponibilidade de equipamentos e serviços, convive com a crescente participação de fontes renováveis intermitentes e passa por uma rápida digitalização, com mais sensores, automação e produção massiva de dados. Ao mesmo tempo, é preciso lidar com os desafios da transição energética, das mudanças climáticas e da maior frequência de eventos extremos, o que demanda mais adaptabilidade e resiliência. Esse cenário aponta para a IA como uma aliada estratégica, capaz de apoiar o setor nesse processo de transformação.
No entanto, devido ao alto grau de complexidade do setor e por se tratar de infraestrutura crítica, aplicações de IA exigirão soluções altamente especializadas. O setor elétrico apresenta desafios bastante específicos como linguagem técnica densa e repleta de jargões, arcabouço regulatório extenso e em constante evolução, além de requisitos rigorosos de confiabilidade e continuidade do serviço. Adicionalmente, lidamos com dados heterogêneos, dispersos e oriundos de fontes e padrões diversos. Esses fatores tornam a aplicação de IA, especialmente de modelos de linguagem de grande porte (LLMs), de um lado, um desafio considerável, e de outro, uma grande oportunidade para gerar valor e apoiar decisões críticas em todo o setor.
O uso de LLMs tem se expandido rapidamente em todo o mundo, impulsionado por avanços na pesquisa e pela adoção crescente por empresas e instituições. Inicialmente voltados a aplicações genéricas, esses modelos estão evoluindo para usos mais especializados, adaptados a contextos específicos e áreas técnicas complexas. Essa tendência reflete um movimento global rumo à personalização e ao aproveitamento do potencial dos modelos de linguagem em domínios críticos, como o de energia.
Por outro lado, uma pesquisa a respeito das capacidades em Inteligência Artificial conduzida pelo Tortoise Media, publicada em setembro de 2024, aponta o Brasil como ocupante da 30ª posição em um ranking com 83 países, como mostra o quadro abaixo.

Fonte: The Global AI Index 2024, Tortoise Media
Além disso, sabe-se que o treinamento de grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT, o Gemini, ou o Llama foi, e tem sido, extremamente intensivo em consumo de capital, infraestrutura e dados. Mesmo o DeepSeek, sensação chinesa por ter sido desenvolvido com menos recursos em comparação aos seus antecessores, ainda se apresenta bem distante da realidade brasileira. Para se ter uma ideia comparativa, dados da Universidade Stanford apontam para investimentos da China superiores a 1 trilhão de dólares em IA, entre 2013 e 2024, enquanto o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) prevê investimentos da ordem de R$ 23 bilhões, aproximadamente 4 bilhões de dólares, até 2028.
Uma recente publicação do Estadão, o especial “Tecnologia em Transformação”, trouxe à tona um importante dilema estratégico relacionado à posição do Brasil nessa corrida da Inteligência Artificial. Em uma de suas reportagens, intitulada “Chance de o Brasil ter o próprio ChatGPT é baixa, mas há alternativas para nós no xadrez da IA”, o jornal discute se o País deve adaptar modelos internacionais às suas necessidades ou investir no desenvolvimento de tecnologias próprias, com o objetivo de conquistar maior autonomia e protagonismo no cenário global.
Diante dessa questão, acreditamos que o caminho mais promissor para o Brasil passa por uma estratégia combinada. De um lado, é possível adaptar modelos internacionais, open source ou proprietários, para desenvolver soluções ajustadas à realidade nacional. De outro, é fundamental fortalecer a pesquisa acadêmica e os investimentos em modelos de linguagem treinados no Brasil, em português, com dados locais, criando as bases para uma inteligência artificial capaz de compreender e responder aos nossos desafios com mais precisão.
EnergyGPT: IA generativa para o setor elétrico
É justamente nesse contexto que surge o projeto de PDI ANEEL EnergyGPT, em desenvolvimento por meio de parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG) e o Centro de Excelência em IA (CEIA). Trata-se de uma iniciativa da Cemig que busca desenvolver, no Brasil, modelos de linguagem especializados no setor elétrico brasileiro, com ênfase na compreensão e geração de textos técnicos, jurídicos, regulatórios e operacionais. O projeto, que utiliza IA generativa, visa criar uma base cognitiva robusta, treinada em português e alimentada com documentos reais do setor, capazes de atender demandas como leitura automatizada de normas, apoio à análise jurídica, interpretação de dados de medição, simulações regulatórias, padronização de respostas, dentre outros desafios do setor.
A arquitetura do EnergyGPT contemplará diferentes portes de modelo, desde versões mais leves para uso local e dispositivos de borda (EnergyGPT Tiny), até modelos de larga escala (EnergyGPT Large) para ambientes corporativos de alta performance, a fim de permitir adaptar a tecnologia a múltiplos contextos de uso. O projeto conta ainda com três supercomputadores DGX H100, da NVIDIA, dedicados ao treinamento dos modelos.
Conheça mais sobre o projeto EnergyGPT.
A estratégia de desenvolvimento adotada priorizou a experimentação aplicada em contextos reais, com estudos de caso conduzidos em áreas como Auditoria Interna, Jurídico, Inovação, Comercialização de Energia, Regulatório, Escritório de Projetos, Engenharia, Normas Técnicas e outros. Esses pilotos buscam demonstrar a capacidade do EnergyGPT em gerar valor, acelerar processos, reduzir custos operacionais, aumentar a qualidade das análises e apoiar a tomada de decisão com base em documentos complexos. Ao mesmo tempo, o projeto contribui para o amadurecimento do ecossistema de IA no Brasil, já que explora caminhos técnicos e metodológicos para adaptação dos LLMs à realidade nacional.
O professor da UFG, Sávio de Oliveira, um dos líderes técnicos da iniciativa, destaca o diferencial prático da abordagem: